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"MUNDO MITOLÓGICO DE ANDREA ROCCO OU DA RAZÃO ESCALDADA" por Maria Arminda do Nascimento Arruda


Maria Arminda do Nascimento Arruda - foto: Denise Andrade


"Desassossegada é a imagética da artista plástica Andrea Rocco. Distante do repouso. O encontro com a sua obra cria uma intranquilidade de tal ordem, que as imagens ficam povoando a nossa mente de forma a produzir o movimento estonteante do caleidoscópio. A obra da artista não convida à pura contemplação, antes anuncia a sua impossibilidade, pois não nos liberta do mal-estar que permeia o mundo contemporâneo. A combinação entre pinturas, poesias, desenhos, bordados, se revela as múltiplas facetas do seu talento, encaminha para a complexidade da articulação entre as diversas linguagens, normalmente tratadas como domínios exclusivos. A tensão advinda dessa combinação inusual, produzida pela relação entre imagem e texto, a qual se soma a presença de narrativas míticas, seja de viajantes que interpretaram o Brasil, seja das histórias infantis transmitidas por gerações, seja ainda de natureza filosófica, acaba por amplificar as contradições existentes, que ganham radicalidade no modo como a relação entre os gêneros é explorada. Há, finalmente, um enigma a ser desvendado, revelando a expressividade superior da sua fatura.


A força do conjunto não elide, no entanto, o significado de cada linguagem particularmente considerada, construindo uma espécie de mosaico no qual o olhar move-se ora em direção à pintura, ora aos textos, ora ainda aos bordados. Cada dimensão particular é portadora de sentidos próprios, cujo código exclusivo exige interpretação especial. Porém, o emprego de vários códigos convida ao esforço simultâneo de buscar os princípios de tradutibilidade, isto é, tanto de preservar, quanto de ultrapassar as propriedades singulares, sem reduzir o conjunto a quaisquer deles. Nessa perspectiva, a identidade da obra de Andrea Rocco flui, precisamente, do talento de articular as diferenças, construindo um projeto que propõe uma homologia entre linguagens, porém não de modo horizontal, mas que cria gradações, pontos ascendentes e descendentes que se conectam na percepção do espectador.


À primeira vista, o conjunto lembra experimentos infantis, as pinturas parecem desenhos, as poesias são exercícios narrativos, os esboços são flores imaginárias, os bordados compõem a série cantiga de ninar que se utiliza de tecidos guardados pela família, espécie de relação de intimidade e distanciamento com a herança e de superação da tradição cultural das histórias para crianças. O retorno à infância produz um jogo tenso de percepções que articula a memória, o tempo, a ancestralidade. Este triângulo - que institui a fatura da artista plástica - é permeado de significados, funcionando como revelação da singularidade do seu trabalho, de incorporação, concomitantemente de ultrapassagem do seu legado. Andrea Rocco borda a sua própria linguagem e arquiteta a sua herança.


Não por casualidade, predominam as imagens de crianças e adolescentes em situações de extrema vulnerabilidade, frente às arbitrariedades do mundo adulto e à fragilidade inerente à condição. O elo entre os quadros, os poemas, os desenhos e os bordados parece aludir à ideia de uma violação original, uma sorte de violência primordial a confirmar a impossibilidade da inocência. O universo de Andrea Rocco distingue-se por destacar a violência que permeia as nossas relações, que é por ela potencializada. Ganha visibilidade a representação das desventuras originadas na opressão a que são submetidas crianças, adolescentes e mulheres. Raramente, a relação forma e conteúdo chega a uma solução tão integrada e harmoniosa.


As referências às construções mitológicas da cultura clássica e aos relatos dos viajantes, que aqui aportaram, amalgamaram-se às linguagens das vanguardas do Ocidente. Interessante perceber que, nos diálogos de Andrea, dominam concepções que constroem, sobretudo, as visões mais cinzentas sobre o legado da cultura ocidental e sobre a nossa formação histórica. Em A musa adormecida, os versos “eu não era Narciso mas vi meu reflexo nela. Me apaixonei por mim, pela musa e pelo Brancusi”. Ou em Procne e Filomena, o verso de Ovídeo “a boca muda não pode denunciar o crime” serve de suporte à construção do xadrez, do segredo partilhado por irmãs que são peças de um tabuleiro movidas por mãos externas, cujas “bocas silenciadas”, aludem ao destino de violência a que são relegadas. Pé de Zimbro inspira-se na história infantil para criar um quadro extremo de violência.

Na paleta da artista, mulheres e crianças são prisioneiras da teia de relações desiguais e arbitrárias. O imaginário de Andrea Rocco está permeado de erotismo, mas nunca como vivência humanamente liberadora, antes como prática de violação. A força dessas imagens desorienta consciências apaziguadas, como se vê em Rapunzel, Pele de Asno, Cinderela, Iara, Árvore dos Gansos. Já Piromania mescla prazer e dor na exploração da sexualidade pueril, na qual a relva não é leito aconchegante, o susto, a melancolia e o medo presente nos rostos conduzem à representação do dilaceramento.


O mundo em vertigem da artista traz à cena o drama originário da humanidade, no qual a cegueira hodiernamente dominante é restituída à experiência da vida desencantada, por ter perdido a magia primeva, prometida, mas não realizada. Daí a violência do quotidiano se banaliza expulsando todo o encanto, levando de roldão a dimensão redentora da arte. Desse modo, se é possível reconhecer um sentido religioso oblíquo e mesmo político na obra da artista, há especialmente um diálogo interno com o campo artístico. Ou seja, uma modalidade de incorporação da relatividade do trabalho de arte na sociedade contemporânea, que, no seu caso, surge por meio da assimilação de diversas linguagens expressivas, a compor um puzzle incomum. Da artesania de Andrea Rocco brota um mundo no qual os cordeiros e crianças são comidos e deflorados como as flores, visto em Sem Carneiro e Rosas. Em Sanha, a força da mão retorcida perdeu o ponto da transformação representada pela arte: “tudo é fervor, a razão foi escaldada, eis a maçaroca... a massa desandou. Encruou. Jaz o pão seco e duro. Faminto fico, ficarão todos”. A arte perdeu o ponto; sem ela, no entanto, não temos o alimento do espírito.


O diálogo fecundo com as contradições do fazer artístico e a consciência das suas fragilidades exprimem a visão crítica da artista, levando a uma espécie de alegoria tanto do mundo presente, quanto dos impasses vividos pelos representantes das artes. O retorno mítico à perda original já no nascimento representa, igualmente, uma posição radical diante do métier, desfazendo concepções inefáveis sobre o domínio das artes; não há inocência possível; tampouco apaziguamento. Porém, Andrea Rocco abre fendas de ar fresco na série Herbarium, com flores compostas pela fantasia, pela recriação. Eis aí a sua utopia e uma espécie de aposta num mundo transformado." - Maria Arminda do Nascimento Arruda


Em 22/11/2023 a Galeria Bianca Boeckel abriu a exposição "Desassossego" da artista Andrea Rocco. Confira as fotos do evento: https://www.arteempauta.com.br/22-11-2023-expo-desassossego




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